terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Perder não é apenas perder


Perder algo ou alguém mobiliza nossa inestimável capacidade de reconstrução, de resignificação das decisões e das metas. A perda instaura o vazio, e o vazio incita a busca; é somente a partir da sensação de falta que as ações ganham uma contundente definição,  isto é, provocam um envolvimento deliberado de desarticulação dessa falta. No entanto, ainda que conscientes dessa realidade, dificilmente não nos abatemos frente à frustração de uma perda. Em nossa percepção (em nossos sentimentos, em nossa razão, em nosso corpo), perder é sempre algo ruim, doloroso, um mal que deve ser evitado. Mas será que a perda é algo sempre tão ruim?




Desde que nascemos, sofremos a experiência da perda. O aconchego do útero logo cede lugar a uma variada gama de agressões ao corpo; o contato com este mundo estranho e heterogêneo grava em nossa história uma inegável verdade: a vitalidade da existência humana pressupõe a falta, o afastamento, a incompreensão e a degradação; enfim, pressupõe a inevitabilidade da perda. Portanto, cada segundo da vida mobiliza a realidade da morte, cada momento ou tempo de felicidade está em íntimo contato com a experiência aflitiva. Estamos, na verdade, fazendo piquenique em um desconhecido campo de guerra. Mesmo com a força da racionalidade, estamos entregues a um fluxo de ações que nos atingem de forma imprevisível.



Se tivéssemos tais ponderações em mente a cada minuto, abraçaríamos talvez o desvario; talvez deixaríamos de experimentar o prazer necessário ou até correríamos o risco de tornar banais as interações que importam significados a nossa vida. O cenário acima esmiuçado sugere que a perda não é uma exceção. Muitas vezes, nos iludimos com uma falsa estabilidade, com a ideia de que nossos pequenos paraísos são eternos. Todavia, quando somos sufocados por uma pequena ou grande perda, temos enorme dificuldade de moldar novas possibilidades de superação.



Na Arte da guerra, no capítulo “Contingências”, Sun Tzu diz: “Um general sábio deve levar em consideração as vantagens e desvantagens. Conhecendo as vantagens, ele terá sucesso nos seus planos. Conhecendo as desvantagens, ele poderá solucionar as dificuldades.” Mais a frente, afirma também que não se deve esperar a ausência do inimigo, tampouco a retração de seu ataque. Tais reflexões podem ser facilmente associadas à metáfora (tão bem conhecida e propalada pelo senso comum) da vida como campo de batalha. Assim como o inimigo é inevitável, a perda também é.  A questão principal é como lidar com ela. 

Acredito que é preciso “interrogá-la”, conhecê-la, interpretá-la. Afinal, assim como há diferentes tipos de derrotas em guerras, existem diversos tipos de perdas. Algumas são reversíveis, outras não. Entre as reversíveis, há aquelas que se pode reverter em longo ou curto prazo. Algumas nos prostram, outras nos conduzem à superação. Algumas são para o nosso bem, outras nos desgraçam. Contudo, seja qual for o tipo, a possibilidade de outras vitórias nunca morre. Além disso, uma perda nunca é apenas perda. É óbvio que em meio à frustração ou à dor, é quase impossível discernir isso. É inevitável ficar triste, sofrer ou chorar; é imprescindível, quando vem uma perda, ficar triste, sofrer ou chorar. Somos humanos, não máquinas. No entanto, torna-se vital, após a crise, traçar avaliações que impulsionem atitudes renovadas. Ou é isso ou emperramos.



Quais foram as perdas deste ano? Nesta época, de comemorações de fim de ano, tal indagação pode se tornar uma profícua fonte de autoconhecimento e de tomada de decisões. Muitos evitam essa indagação por medo; outros muitos simplesmente a evitam por não se importarem com isso. Aí quando as perdas se repetem, não desenvolveram uma força defensiva imprescindível a posterior superação.
Ninguém gosta de perder, ninguém planeja perder. Entretanto, creio que saber aceitar certas perdas é parte essencial de nosso amadurecimento. De fato, podemos (e devemos) reverter diversas situações com empenho, estratégia, pedido de ajuda, fé, coragem, paixão... Mas às vezes a perda é irreversível mesmo, por mais obstinados que sejamos. Nesse caso, só resta confiar, e acreditar, e refletir, e conversar, e esperar, e reconhecer as pequenas felicidades que nos amparam no dia a dia. Lembra-nos Boécio em sua obra A consolação da filosofia:

E conserva o essencial, mesmo tendo perdido os detalhes.
Por isso, um homem que procura a verdade
Vive numa situação intermediária: ele não sabe
E, no entanto, não ignora de tudo;
Ele conserva e evoca o essencial,
Ele reflete e lembra-se do que viu lá no alto
De forma que pode ajuntar as partes esquecidas
Àquelas que ele conserva.

                Às vezes o confronto, outras vezes a resignação, mas sempre a vontade de ir além das distâncias que a vida nos impõe. Um abraço a todos e ótimas festas.