Quando você tiver a
minha idade
Certo dia,
chegando de um dia exaustivo de trabalho, ouvi uma intrigante frase de um
vizinho: “Quando você chegar na minha idade...”. O incompleto enunciado teve
origem após minha atestação de cansaço. Meu semblante, meu corpo e minha voz
refletiam não apenas o cansaço do dia, mas minha intensa jornada de meses de
árduo trabalho. Aquela semana em particular foi pesada. Ao subir as escadas e
me deparar com o vizinho, fiz o espontâneo desabafo. Desabafo esse que era
quase um pedido de conforto, uma exigência implícita de palavras que atenuassem
aquele meu calvário particular. Nem imaginem o que quanto eu fiquei chateado
com a tal frase: “Quando você chegar na minha idade...”. Mas afinal por que
deveria ouvir palavras de conforto? Minha relação com o vizinho sempre foi
somente o da mera formalidade (até quando havia algumas informalidades!); não
existia amizade, tampouco um pacto familiar.
Aquele senhor era simplesmente um conhecido que morava perto de mim, um
homem com quem eu havia conversado banalidades algumas vezes. Nossa interação
era simplesmente balizada pelas regras de obrigação de convivência. Só. Na
verdade, não fiquei chateado com a falta de empatia; fiquei realmente chateado
com a tal frase, essa irritante frase que me fez realizar algumas ponderações
que eu gostaria de compartilhar aqui.
O que me
deixou irritado é que o referido enunciado me passou um certo ar de
superioridade. Implicitamente parecia que o senhor dizia: “Eu já cumpri meu
papel social: trabalhei árduo durante boa parte da vida, me aposentei com
merecimento e ainda me sobrou bastante energia para viver. Você é jovem, ainda
não cumpriu seu papel, fez muito pouco, por isso não tem o direito de reclamar
ou de ficar cansado. Se você está reclamando, você é um fraco. Veja minha
geração: forte e cumpridora dos deveres. Somos vencedores...”. Viagem minha? Talvez. Não estou aqui
afirmando categoricamente que a intenção do vizinho foi a de desprezo. No
entanto, essa minha paráfrase do suposto implícito reflete um pensamento que já
me foi verbalizado algumas vezes. Homens e mulheres de idade bem avançada já me
confessaram orgulhosamente sua superioridade em relação aos de bem menos idade.
Trata-se de um discurso que esbanja uma força quase vingativa e que menospreza
a quantidade e a qualidade das atividades dos mais jovens. Esta jovem geração
(não me arrisco a fazer uma seleção etária sob o risco de ser linchado) está
reclamando à toa? Desejo lembrar que a quantidade de demandas que caem sobre
nós é imensa. Não quero aqui comparar épocas. Só estou afirmando que hoje a
carga de informação e deveres que recebemos é muito grande. Mergulhados no boom do avanço tecnológico, somos
intensamente tragados em uma rede de ações que tornam o trabalho, o estudo e
até o lazer um tornado ininterrupto de ocupações. Os jovens que estudam seriamente ou que trabalham de
forma comprometida ou que estudam e trabalham com responsabilidade estão muito ocupados. A rapidez da troca em
mundo pós-moderno tecnológico, consumista e hedonista nos conduz por caminhados
desconhecidos pelas gerações anteriores. As obrigações de hoje (de trabalho, de
estudo, afetivas) são diferentes. Não quero afirmar que são maiores do que as
de antigamente; entretanto, não se pode
negar nossa nova realidade: nosso cotidiano nos impõe atividades que nos sugam
as forças de modo avassalador!
Quanto a mim,
gostaria de expressar rapidamente minha indignação. Talvez eu encontre algum
leitor que se encontre em posição parecida com a minha.
Prezado
vizinho, não quero entrar em pormenores, contudo lhe digo o seguinte (até com
um pouco de orgulho, admito): diariamente tenho que acordar cedo para estudar e trabalhar. Tenho que cumprir uma dura
jornada que se estende, em certos dias, até a noite. Sei que o senhor fez isso
(algo parecido) também em sua juventude. No entanto, nossos caminhos são bem
diversos. Sou jovem sim, mas já realizei muitas coisas que você na minha idade
nem sonhava em fazer. Sei disso pelo que já conversamos. Se quiser saber o que
já fiz e venho fazendo, podemos conversar pessoalmente um dia, sem
formalidades, sem pré-julgamentos. Sou uma pessoa ativa, esforçada e sonhadora,
que busco algo além do padrão de vida que você considera como a grande essência
da vida. Que padrão é esse? Trabalhar, comer, descansar, pagar as contas;
trabalhar, comer, descansar, pagar as contas; trabalhar, comer, descansar,
pagar as contas. E para quê? Para se aposentar, comer, descansar, pagar as
contas. O senhor me desculpe, mas chego cansado porque quero tentar burlar um
pouco esse padrão. Já estou conseguindo em grande parte. Quero mais do que esse
paradigma da sobrevivência. Por tudo isso, tenho o direito de ficar cansado e
reclamar. Sou uma pessoa que estuda e que trabalha bastante, sou um jovem imerso
em mundo bem diferente do seu, um mundo com pressões e desejos bem diferentes
dos seus. Desculpe-me (deixo claro que respeito seu modo de vida embora não
concorde), mas não quero uma vitalidade que se rejubila em seu cômodo padrão.
Espero chegar
à idade do meu “algoz” com saúde, paz e vitalidade. Espero não chegar cansado
ou acomodado. Apesar de minha irritação e do desabafo acima, não censuro
totalmente o meu vizinho. Imagino que ele tenha feito grandes avanços em
relação ao pai, mesmo se acomodando no paradigma acima do qual desdenhei.
Imagino também que existe um orgulho dele por uma dupla façanha: superar os
padrões do pai e incorporar com sagacidade parte desses padrões. Acho até que a
consideração que ele fez tem como base alguns jovens que ele conhece (até da
própria família), que não possuem metas ousadas, tampouco vidas ousadas. Devo
ressaltar, todavia, que muitos jovens estão ousando, isto é, estão buscando ir
bem além da cultura que lhe é imposta. São eles que, assim como eu, sofrem os
impactos deste novo mundo e que tentam tornar suas vidas mais significativas.
Esses jovens também têm o sacro direito de se cansarem.
Talvez eu
chegue na idade de meu vizinho com um orgulho similar. Entretanto, tentarei
reconhecer o esforço dos jovens batalhadores. Esse é, sem dúvida, um importante
desafio desta geração de jovens que um dia se aposentará (quero chegar lá, mas
sem pressa). Isso porque os julgamentos precipitados impedem as trocas que
constroem os mais belos modos de se viver.
Hudson