quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Tempo de Deus, tempo dos homens




 



Somos obrigados a não acreditar em Deus? Como o ser humano ama polarizações. Há alguns séculos aqueles que manifestavam seu ateísmo eram severamente condenados; não acreditar em Deus ou na religião cristã era uma ofensa tão grande que, em muitos casos, o herege era sentenciado a uma estúpida morte. Atualmente ser ateu ou silenciar seu credo religioso parece ser quase uma norma (um dogma?!) do lado estúpido do “politicamente correto”. Geralmente existe uma grande associação da ideia de respeito à diversidade religiosa do nosso país a um impedimento tácito da livre expressão de fé em determinados lugares. Não expressar seus valores religiosos em certos lugares (escola, clubes, trabalho) acaba sendo uma regra geral. Surge aí uma grande contradição: todas as religiões devem ser respeitadas, nenhuma delas pode ser manifesta de forma tão livre assim. 


A JMJ-2013 mostrou que a religião ainda tem lugar no coração de jovens e de homens e mulheres brasileiros de variadas faixas etárias. Vimos, na última semana de julho, o fervor religioso de milhares de pessoas desejosas de valores maiores do que a corrente  absolutização dos valores materiais. Podemos notar também que o evento nos deixou como legado algumas lições importantes que mostram como a religião cristã e seus ensinamentos não precisam estar necessariamente presos a um frio estudo histórico ou sociológico ou a um conjunto de interessadas estratégias políticas.


 Algumas lições da JMJ:
 

Política e religião podem dialogar inteligentemente

No dia 23, o papa Francisco profere seu primeiro discurso. A presidente Dilma foi a única a discursar e aproveitou o momento para falar sobre a legitimidade das manifestações (de seu governo) de junho em sua luta pelos interesses da população e em prol da ética, do respeito e da transparência nos processos democráticos. Ela discursa sobre a crença de um amanhã melhor, sobre a fé dos brasileiros em futuro mais igualitário. O papa, por outro lado, concentra-se na mensagem religiosa. Entre as várias frases de efeito, destaco uma que é emblemática na missão do pontífice em sua vinda ao Rio: “Cristo bota fé nos jovens”. Houve críticas em relação a uma suposta postura apolítica. Ledo engano. Francisco apenas preparava o caminho para sua jornada de pleno engajamento na realidade do povo brasileiro. Ao longo da semana, o papa mostrou-se um religioso preocupado com a globalização da indiferença, com a inserção do jovem no mercado de trabalho, com a injustiça social, com a violência, com a corrupção, enfim, com várias questões que atingem em cheio nossa cultura plena de beleza e contradições. Vimos claramente que religião e política, apesar de nossos odiosos pesadelos históricos, podem interagir de modo constante e eficiente. Ser religioso não implica estar alheio às condições sociopolíticas da atualidade brasileira e mundial. Agora, ser político possibilita, muitas vezes, que a religião funcione como ponte “eleitoreira”...
  
 

Religião também é partilha e calor humano

No dia 24, fez um frio incomum no Rio. Mesmo assim milhares de fiéis dormiram na praia de Copacabana à espera da programação do dia. Repentinamente ecoa uma voz sonolenta no meio dos fiéis: “Para Deus não tem frio ou calor, só a fé”. Um coro responde: “amém”. Loucura ou sabor de viver? As diferentes nacionalidades e idiomas não impediam aquela partilha generosa de alimentos e bebida. Famílias, amigos e desavisados acordavam para mais um dia de prática coletiva da fé. Houve até corajosos que se aventuraram em dar um mergulho “desperta pra vida” nas águas gélidas da praia. Muita coragem mesmo (grande insensatez, na verdade). Viva o calor humano!
  


Confiar em Deus, agir com cautela.

Confiar em Deus, um dos muitos e importantes preceitos do pensamento cristão: “confie em Deus, amigo, mas falar no celular em uma rua escura de Copa...”. No sábado, dia 27, dia da vigília pascal, uma jovem chorava copiosamente porque seu celular havia sido roubado. A jovem estava em uma rua paralela ao evento e, enquanto utilizava o aparelho, uma adolescente mal vestida toma o celular de suas mãos e passa para outro adolescente que corre rapidamente para outra rua. Lamentável. É tipo de situação que dificilmente tem solução imediata. Críticas e falas de apoio frente ao acontecido e uma lição essencial para eventos desse porte: confiemos em Deus, mas cuidados com os homens...


A religião não precisa ser indiferente às diferenças.

Me aproximei de alguns jovens com umas bandeirinhas da Argentina para me informar sobre suas impressões sobre o Rio e sobre o evento. Eu quis obviamente praticar um pouco de meu castelhano também. Para minha surpresa, esses jovens não eram argentinos, mas brasileiros. “Esse é um momento de união, de paz e troca.”, enfatizou um deles. Senti uma mistura de encanto com tristeza. Tristeza porque geralmente a visão que muitos brasileiros têm dos argentinos e de outros estrangeiros é bastante preconceituosa. Pouco conhecimento associado a um provincianismo alienado, por isso o preconceito se espalha em atos explícitos e implícitos, em falas e pensamentos irrefletidos escondidos perversamente no humor descabido de mentes incautas. Sobra sentimento espúrio para o “paraíba”, para o negro, para o devoto... O que fiz depois dessa tristeza? Comprei minhas bandeirinhas da Argentina, não apenas para guardar de lembrança, mas principalmente para externar minha convicção permanente no diálogo com a diferença.


O papa é pop, mas não é Deus.

É incrível (e assustador) a capacidade do ser humano em criar astros pop. O New York Times do dia 28 compara a popularidade do papa com a de um rock star. O artigo destaca não apenas a simpatia do pontífice, mas sua habilidade em agir como uma pessoa pública no exercício de seu ministério. Era realmente impressionante (repito: assustador!) assistir à passagem do papa móvel na orla de Copacabana. Gritaria, gente se empurrando, animação... Algumas mães, estrategicamente, “usavam” seu bebê para conseguir espaço em meio à multidão e se aproximar da grade de isolamento para tentar um toque ou um gesto de carinho de Francisco. Naquela confusão toda, fiquei me perguntando se muitas dessas pessoas compreendiam o significado da jornada e da presença do papa no Rio. Será que aquele momento se tornaria somente mais uma foto ou um vídeo na rede social?
 

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