Convivência
O
fluxo conflituoso da convivência nos atinge desde cedo. Aprendemos que para
vencer na vida devemos obter conhecimentos necessários, buscar nossa
independência e aperfeiçoar aptidões pessoais e profissionais. Todos esses
passos nos lançam em um circuito de disputa e legitimação, nos empurram a favor
e contra os semelhantes. A jornada pela vida agrega, porque todos precisam do
outro para a construção da identidade; por outro lado, a alteridade também
precisa ser desafiada para que essa identidade se consolide. Por essa razão, a
convivência é desde cedo conflituosa, ambígua e necessária: estar com é
paradoxalmente um alento e um estado de alerta, é a condição sine que non da significação da
existência e o seu fardo. Se por causa do outro que nos tornamos sublimes, pelo
outro também atingimos os mais altos graus de barbárie.
Conviver
é uma arte, é uma potência que mobiliza o sentimento e o intelecto. É arte
porque exige uma série de estratégias para a manutenção do equilíbrio; é potência
porque obriga a aproximação não planejada das diferenças. De qualquer forma, o
que persiste é o enigma, pois encontrar elos de aproximação fraterna não é uma
fórmula ajustada por uma equação matemática. Daí a importância da luta para a
manutenção duradoura dos vínculos que nos fazem saborear a vida. São esses
vínculos que nos permitem ignorar o contrapeso das associações que agridem as
conquistas de nosso crescimento.
Muitas
convivências sublimes são destruídas pela fatídica desatenção a respeito do
valor das pessoas em nossa vida. As perdas geralmente acontecem quando queremos
impor excessivamente nossa individualidade. Associado a isso, há o fato de que
continuamente tendemos a dispensar o outro e a tratá-lo como mercadoria, ou
seja, se a alteridade não atende às expectativas iniciais da insana vontade,
ela deve ser ignorada e trocada por outra. Simplesmente não nos importamos, não
tentamos compreender, tampouco ceder. O que realmente tem valor é o que eu sou,
por isso, o outro se torna um mero detalhe. As consequências disso? Deixamos de
lado os frutos de coexistências que nos movem para além dos muros de nossa
mediocridade.
Algumas
perdas são inevitáveis e até necessárias. Por isso mesmo é imprescindível a
valorização das nossas verdadeiras redes de convivência sublime. Não me refiro
somente às amizades ou aos relacionamentos de maior intimidade afetiva. As
convivências sublimes também abrangem os encontros ocasionais ou de poucas
intimidades: colegas, conhecidos ou até desconhecidos podem ser importantes
para o cultivo do sagrado na vida humana. Mas isso apenas será viável quando
tivermos consciência de que determinados momentos de convivência precisam ser
saboreados, tanto os mais simples e quanto os mais grandiosos. O cultivo do
sagrado será possível quando o ritmo das obrigações ceder algum lugar ao ritmo
da experiência e do compartilhamento presencial; principalmente, quando a
companhia não for somente corpo, função, número ou endereço virtual, mas sim
uma fonte de possíveis trocas de atenção e cuidado, ou seja, uma pessoa.
A
valorização da convivência é um exercício de acertos e tropeços. É um exercício
valioso e difícil, mas que se praticado com regularidade abre caminhos que
transformam a existência em algo muito maior do que as mecânicas obrigações
diárias.
Hudson
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